Manoel da conceição. E as torturas
Notas biográficas –
“A felicidade é dos que estão sendo perseguidos por causa da justiça, porque o Reino de Deus é para eles”.
Entrevista concedida por Manoel Conceição Santos ao jornal “o Estado de s.Paulo” 12/03/1976.
Nasci a 24 de julho de 1935, no povoado de Pirapema, município de caroata, Estado do Maranhão. Meu pai era um lavrador pobre. Possuía uma pequena gleba de terra deixada como herança de seus avós, onde ele trabalhava e produzia arroz, mandioca, [feijão e verduras na base da enxada e do facão. Nunca sentei num banco de escola, mas aprendi a ler quando era crente na Assembléia de Deus e comecei a ler a Bíblia e uma carta do ABC].
A primeira vez que assisti uma cena de violência me marcou muito. Foi em 1955, quando uma Sra. Margarida Soares, proprietária de grandes extensões de terras, alegou que as propriedades de meu pai e de vários pequenos lavradores eram suas por usucapião. Meu pai não concordou, os avós dele já moravam lá, mas ela trouxe jagunços e policiais para invadir as terras e nós tivemos que sair. Meu pai ainda entrou com recurso na justiça, mas não conseguiu nada. Mudamos então para a localidade de Sta. Luzia município de Bacabal, para terrenos devolutos, que eram do Estado, onde já haviam se estabelecido outros lavradores há mais ou menos 20 anos. Mas dois anos depois em 1957, fomos expulsos novamente, porque um senhor chamado Manaci de Castro, filho do delegado do município, entendeu que as terras eram dele. Fizemos uma reunião de todos os lavradores atingidos para saber o que fazer, mas no meio da reunião, chegaram o Manaci e uns 20 jagunços. Eles não perguntaram do que se tratavam, não falaram nada. Foram logo atirando. Vi 5 pessoas morrerem na hora. Uma velhinha pediu ajoelhada, para não matarem seu filho, que já estava estirado no chão. Foi o que bastou para atravessarem uma peixeira nela. Uma criança quando viu seu pai cair gritou “papai, papai”, e também atiraram nela. Eu escapei com vida, com muita sorte, só levei uma bala que atravessou minha perna. Eu e minha família voltamos então para Pirapema. Em 1960, ajudei a fundar a associação Rural de Pirapema. Éramos 180 associados. Numa assembléia, os associados propuseram recuperar as terras da D. Margarida Soares. Enviamos o presidente para falar com as autoridades, mas ele não conseguiu nada. Então resolvemos apanhar os frutos da terra que tínhamos plantado, para não morrermos de fome. Ela foi para S.Luiz falar que havia um bando de ladrões roubando suas terras e frutos. Fomos falar com as autoridades e um coronel da secretaria de segurança mandou dia e hora para que os associados esperassem uma representação para discutir o assunto. No dia marcado, chegaram 28 soldados 1 tenente, arados. Nem perguntaram o que estava acontecendo conosco e mataram 8 pessoas. Isso aconteceu em 1962, e é uma das histórias mais tristes do Maranhão.
Ficamos novamente sem lugar para morar, e então mudamos para Pindaremirim, onde fiz um curso sobre sindicalismo no movimento de educação de base(MEB) ligada a Igreja, legalmente reconhecido pelo presidente da época João Goulart, só nessa época é que permitiram a sindicalização rural. Ao sair do curso comecei a fazer um trabalho de implantação de escolas de alfabetização, para adultos e crianças. Conseguimos fazer, em mutirão trinta e poucas escolas no município. Em agosto de 1963, ajudei a fundar o Sindicato dos lavradores de Pindaremirim. No mês de Novembro, já tínhamos 4 mil associados. A nossa primeira reivindicação foi pedir a mudança de uma lei municipal, que dizia que o lavrador que tivesse sua propriedade invadida pelo gado devia comunicar ao dono do gado para que ele providenciasse a retirada e, no caso de não ser atendido, devia procurar a prefeitura. Havia grandes fazendas de gado que não eram cercadas e os bois, depois de pastar nas fazendas, iam nas lavouras e estragavam tudo. A gente cansava as pernas de ir às fazendas ou na prefeitura para pedir a retirada e eles nada. Pedimos a solução do problema ao prefeito, à câmara municipal, ao gerente do Banco do Brasil, mas não houve mudança na lei, até que a Assembléia Legislativa votou uma lei que dizia que os criadores de gado deviam cercar suas propriedades. Mas o governo da época, Newton Bello, não mandou cumprir a lei.
Em abril de 1964 mandaram fechar o sindicato. Durante o mês de maio me prenderam cinco vezes na cadeia municipal. Eu ficava preso uns 4 dias por vez. Fui então para a Mata do Caru, trabalhar como agricultor. Em 1965, trabalhei para a eleição de Jose Sarney como governador, pois ele dizia que era a favor dos lavradores e a favor dos sindicatos rurais. Quando ele se elegeu voltei para pindaremirim, onde o prefeito era partidário de Sarney. Ele prometeu resolver o problema do gado e revogou a lei anterior. Mas, em vez de determinar que os fazendeiros cercassem a área de criação, fixou uma área específica para criação de gado. Acontece que gado não entendia de lei e ultrapassava essa faixa. A confusão aumentou outra vez e os lavradores começaram a matar reses que comiam suas lavouras.
Em julho de 1968, um médico para tentar a erradicação da malária junto aos lavradores. Acho que o Prefeito não queria que o sindicato desse essa assistência, porque ele podia perder votos. E então mandou a polícia municipal invadir a casinha onde o médico dava consultas. Fui preso novamente, desta vez ferido na perna direita com cinco balas. Depois de 6 dias de prisão, como só passavam mertiolato na minha perna, deu gangrena. A reação foi grande e então o governador Jose Sarney mandou um avião me buscar no interior e pagou me tratamento em S.Luiz. Foi ai que coloquei esta perna mecânica.
No final de 1968, vim a S.Paulo, para fazer tratamento médico, ficando até 1970, quando voltei a Pindaremirim. Todos os sindicatos estavam fechados e começamos um trabalho de reorganização dos trabalhos, criando cooperativa para eliminar os intermediários que ficavam com todo o lucro tanto na compra de nossa produção, quanto nas vendas dos equipamentos básico para a gente. Isto foi a mesma coisa que mexer num vespeiro.
Em julho de 1972, fui preso em S.Luiz. Logo depois me levaram para o Rio de Janeiro, para um local que não tenho a menor idéia de onde seja, acho que era um local clandestino. Levaram-me encapuzado e deitado no chão de um carro, coberto com uma lona e com uma esteira, bem pesada. Foi nesse lugar que sofri as torturas mais terríveis. Logo que cheguei tiraram minhas pernas mecânicas, para andar eu precisava me arrastar no chão. A coisa que mais me assustou foram várias caveiras dependuradas. Era uma coisa imunda, os cidadãos com o couro seco, horríveis, com os olhos saltados. Os torturadores diziam que eram cadáveres de subversivos que se negaram a falar. Diziam que depois de algum tempo em que eu estivesse desaparecido, a opinião pública iria se esquecer de mim e eles me jogaria no mar ou na montanha. Isso era a mesma coisa que a morte para mim, pois ninguém sabia onde eu estava, todos achavam que eu tinha desaparecido e houve uma grande reação internacional ao meu desaparecimento, conforme soube depois de sair. Para comer me deram apenas pão molhado em água, durante mais ou menos 15 dias.Eu tinha que fazer as necessidades fisiológicas no cubículo onde estava, e depois de alguns dias, não agüentava mais o mau cheiro. Nos primeiros dias me espaçaram muito. Depois me dependuraram pelos braços, e ataram meu pênis com uma corda para que eu não urinasse. Eu estava com dores terríveis, minha perna inchava demais, até que chegou o momento em que eu perdi a noção de que estava vivo. Acordei num hospital. Depois do tratamento, voltei novamente para a tortura. Em 4 meses fui 6 vezes ao hospital, levado como morto. Numa vez saia sangue no meu nariz, da orelha e da boca, e eu estava com o corpo cheio de manchas azuis e roxas. Depois eu sai deste local e me levaram para o Serimar, onde fui mais torturado ainda. Do Rio me levaram para Salvador, por uns 15 dias e depois para Maceió, por uns 10 dias. Nessas cidades não me torturaram, só queriam me esconder porque havia muita gente querendo saber do meu paradeiro. Só devolveram minha perna quando sai do Rio. Em Dezembro me levaram para Fortaleza, onde em meu depoimento descrevi todas as torturas que sofri no Rio.
Fiquei 4 meses incomunicável e respondi a inquérito militar. Em maio de 1975, fui julgado e condenado a 3 anos. Como já tinha cumprido 3 anos e 4 meses, me soltaram no dia seguinte, 28 de Maio.
Logo que sai da prisão, como não tinha amigos nem parentes em Fortaleza, fui para casa de D.Aloísio Lorscheider. Fiquei lá até o dia 12 de Agosto, quando vim para S.Paulo, para fazer tratamento médico. Eu ainda estava com cicatrizes que doíam demais nos órgãos genitais e estava com problemas na coluna no pescoço e no braço.
Depois de sair do hospital Sta.Catarina, fui morar na casa de padres. Esperava encontrar trabalho na cidade porque eu não tinha mais condições físicas de trabalhar no campo. Tive uma vida limpa, tranqüila, em outubro fui numa reunião do movimento pela não violência, na Freguesia do Ó. No dia 23 deste mês, fui preso na casa do padre Domingos, em Osasco por dois homens; um alto e outro mais baixo, cabeludo e barbudo. Depois de minha prisão vi que havia um terceiro homem, um japonês que ficava no volante do carro Volks à minha espera. No carro ouvi eles falarem no microfone. O maior peixe da subversão brasileira e da chamada AP. Fui chamado para o Deops e logo me puseram na geladeira, totalmente nu, onde fiquei 12 dias, e depois fui colocado durante cerca de 12 dias numa cela com marginais.
Voltei para o fundão até o dia de minha saída 11 de Dezembro.
Logo que cheguei ao Deops comecei a apanhar. Não sofri barbaridades como da outra vez. Não passei pelo pau-de-arara nem pela cadeira de dragão. Mas recebi muitas pancadas na cabeça, tapões de orelha, murros no estomago, choques elétricos. Várias vezes emissários do DOI- vieram me desafiar na cela. “Eis aqui o famoso Manoel da Conceição, vamos acabar com ele” Várias vezes me disseram nos interrogatórios “A sua prisão nada tem a ver com a justiça”. O problema é nosso. A justiça foi incapaz de fazer o seu julgamento “. Queriam que eu acusasse a Igreja de subversiva e eu me neguei a fazer uma acusação falsa como essa. Uma vez estava encapuzado e ouvi uma voz dizer: Temos que fazer um feixe de padres e mandá-los para o inferno”.
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